27.7.15

Nabokov

A lógica de seus delírios chegou a ser tema de um longo artigo publicado em uma revista científica, mas ela e o marido já haviam desvendado o mistério muito antes. “Mania referencial”, dizia o artigo de Herman Brink. Casos raros em que o paciente imagina que tudo o que acontece ao redor seja uma referência velada à sua personalidade e existência. Ele exclui pessoas de carne e osso da conspiração porque se considera muito mais inteligente que elas. A natureza o espreita onde quer que ele vá. Nuvens no céu transmitem com vagarosos sinais informações extremamente detalhadas sobre ele umas para as outras. Seus pensamentos mais íntimos são discutidos ao anoitecer por árvores sombrias que gesticulam sem parar em um alfabeto manual. Superfícies irregulares, manchinhas e sardas formam terríveis mensagens que ele é obrigado a interceptar. Tudo é cifrado e tudo fala sobre ele. Alguns dos espiões são observadores imparciais, como superfícies de vidro e até piscinas; outros, como casacos na vitrine de uma loja, são testemunhas preconceituosas, no fundo, linchadores; outros ainda (água corrente, tempestades) são tão histéricos que beiram a insanidade, têm uma opinião distorcida a seu respeito e interpretam suas ações de modo grotescamente errado. Ele precisa estar o tempo inteiro alerta e dedicar cada minuto e cada centelha da vida à decodificação da ondulação das coisas. Até o ar que ele exala é indexado e arquivado. Se ao menos o interesse que ele desperta ficasse limitado às coisas ao seu redor, o que infelizmente não acontece! Com a distância, as torrentes de ofensas selvagens aumentam em volume e volubilidade. Ampliados um milhão de vezes, seus glóbulos sanguíneos passam por cima de vastas planícies; mais além, grandes montanhas de solidez e altura insuportáveis resumem, a ponto de granitos e de lamentosos abetos, a verdade última de seu ser.

[...]

Tudo isso e muito mais ela aceitou, afinal, viver é aceitar a perda de uma alegria após a outra. No seu caso não eram nem sequer alegrias, e sim meras possibilidades de melhora. Ela pensou nas recorrentes ondas de dor que, por uma razão ou por outra, ela e o marido tiveram que suportar; nos gigantes invisíveis que feriam seu filho de um jeito inimaginável; na quantidade incalculável de ternura que havia no mundo; no destino dessa ternura, que era ser esmagada ou desperdiçada, ou transformada em loucura; nas crianças abandonadas cantando para si mesmas em um cantinho empoeirado; nas belas ervas daninhas que não conseguem se esconder das mãos do fazendeiro e assistem impotentes a essa símia sombra que delas se aproxima para roubar suas flores já então despedaçadas, à medida que cai a terrível escuridão da noite.

16.6.15

Budismo

Um bom resumo do que é o budismo, que retiro deste livro:

"All I can tell you is to watch yourself, to watch your own life, try different things out and see what works for you. What works, keep doing; what doesn’t work, discard and go on to something else."


15.6.15

Ouvidos alucinados

O interesse na leitura, mágica como um sonho profundo, havia enganado meus ouvidos alucinados. 


9.6.15

Que graça tem

Ausento-me, por tempo indeterminado do Facebook e de outras redes sociais. Não cheguei a fechar nenhuma conta, mas não vou mais usá-las, a não ser quando alguém entrar em contato comigo por lá. Não só passei a ficar mais envergonhado de tudo o que posto, como se tornou sem sentido: para que e especialmente para quem postar? Não há ninguém mais que eu faça questão de que acompanhe a minha vida, ou minhas reflexões -- e se há alguém, esta pessoa não faz parte das minhas redes.

Há também uma razão distinta: a vida das pessoas tem me interessado cada vez menos, o que considero um motivo de celebração, pois assim não perco o encanto pelas vidas que realmente importam, as de um Moses Herzog, de um Charles Swann, de um Alex Portnoy, de um Holden Caulfield. São essas vidas que realmente importam, não a do cara que trabalhou comigo na empresa X e posta fotos no Outback ou no restaurante cool da Vila Madalena.

Essas reflexões, bastante recentes e advindas dessa decisão de me ausentar assim, me trouxeram à memória uma descrição das casas japonesas, a partir do relato de Lafcadio Hearn.

Em uma casa japonesa, durante as estações mais quentes, tudo é jogado e aberto do lado de fora para tomar sol. Todos os shoji ou telas de papel de correr, que servem de janelas, e todas as telas de papel opacas (fusuma), usadas em outras estações para separar os apartamentos, são removidas. Nada fica entre o chão e o teto, salvo a estrutura ou o esqueleto da casa, que fica literalmente sem paredes e pode ser vista do lado de dentro de qualquer direção. O proprietário, quando acha que a multidão que se junta ao redor muito o constrange, fecha a casa na frente. A multidão, silenciosa e sorridente, então vai para os fundos. Os fundos também são então fechados. Então as massas vão para a direita e para a esquerda da casa; e ambos os lados têm de ser fechados, o que torna a morada insuportavelmente quente. E a multidão protesta, sempre moderadamente.

Pelo que nosso anfitrião, certamente insatisfeito, a repreende com argumentos e com a razão, ainda que sem elevar seu tom de voz. (Nunca essas pessoas elevam seu tom de voz, mesmo quando estão com raiva.) E o que ele diz esforço-me em traduzir, com a ênfase necessária, como se segue:

“Vós para que esse ultraje fazer — o que de maravilhoso há?
Teatro não há!
Malabarista não há!
Lutador não há!
Que graça tem?
E de comer hora é; e olhar é algo mau. 
Honorável hora de voltar, olhar que bem faz?”

2.6.15

Aí é que erramos

Pensar que algo é repulsivo ou que algo é atraente são ficções de nossa própria imaginação. Conforme vamos gradualmente conhecendo alguém, sentimentos de intimidade se aprofundam por tal pessoa que achamos compatível e criamos o sentimento de que elas são atraentes. É precisamente por causa dessa circunstância que, ao seguirmos o caminho da afeição, não importa o quanto ela afete nossas vidas, os laços de ternura também aumentam. Quando desenvolvemos sentimentos de amor deste modo, ele parece inevitável, e não importa o quanto reviremos isto em nossas cabeças, está criado o amor, e sem nenhum traço de ódio. Quando o amor chega a um extremo, e achamos que, ainda que vivamos cem milhões de anos, nossos sentimentos jamais mudarão, aí é que erramos.

O texto acima, uma espécie de gênese amorosa, podia ser de Marcel Proust ou do Professor Levy. Mas não, foi escrito por um monge zen do século 17.

29.1.15

Os sete mensageiros

Uma amiga, que não falava comigo há quase três anos, me escreveu hoje, trocamos algumas palavras e eu a atualizei com um pouco da minha vida recente. Como reencontrar alguém que foi ao Butão, sem correio, sem telefone, sem acesso à internet. Para ela, ainda sou o Thiago de três anos atrás. Ainda moro naquela rua, naquela casa, faço aquilo da vida, estou com aquela pessoa (e poderia ainda ser mesmo, mas, no caso, mudou tudo e ela se surpreendeu). Somos como os outros nos veem, e eu sou como ela me via, no passado -- porém enquanto me conjugo no presente, seu olhar se conjuga no pretérito. Me prenderam lá, 2012, e esta tarefa, este esforço, de ser como eu quero que me vejam se revelou absolutamente inútil.
Me senti o personagem daquele conto do Dino Buzzati, "Os Sete Mensageiros", em que o filho de um rei sai para explorar toda a extensão daquele reino. Os dias passam, os anos passam, e parece não haver limite, não haver fronteiras, o reino nunca acaba -- para manter-se informado de tudo o que acontecia no palácio real, a jornada era acompanhada por sete mensageiros, que, em intervalos regulares, iam e voltavam com as notícias de lá e de cá. Como a distância aumentava cada vez mais, os intervalos idem; a ponto de os mensageiros demorarem dezenas de anos entre a ida e a volta. E as notícias chegavam lá e cá já antigas, desatualizadas: nem ele era mais aquela pessoa nem o reino se mantinha fiel ao relato do servo.
O conto termina de forma melancólica (leiam porque, ao recontá-lo assim, só o empobreço): o príncipe se despede de um dos sete mensageiros, sabendo que não o veria mais. Matematicamente a ida e a volta levariam 34 anos e, já em idade avançada, ele não suportaria esperar tanto. O tempo, que durante toda aquela insana jornada, lhe havia coberto de camadas sobrepostas de passado disfarçadas de presente, agora exigia a aliança final, e atemporal: a investida contra uma vida jamais realizada no presente: ele era o que relatava aos mensageiros e na corrida contra o destino sempre ficava pra trás -- e acelerar ainda mais só pioraria.
"Uma nova esperança me fará prosseguir adiante até amanhã de manhã, na direção daquelas montanhas ainda não exploradas, que a penumbra da noite teima em esconder. Mais uma vez, levantarei acampamento enquanto Domenico desaparece no horizonte, na direção oposta, levando minha inútil mensagem ao tão distante palácio."

29.8.14

Mais intermitências

Enquanto trabalho noite adentro, parei um pouco pra assistir a uma entrevista no Jô Soares, com o historiador Jeovah Mendes, especialista em religiões. É reprise, de 2001, e fiquei aqui na dúvida se eu já tinha visto essa entrevista na época ou não. Uma sensação estranha (que não foi a déjà vu) de me transportar para aquela época, mais de dez anos atrás. Eu estava no primeiro ano da faculdade, morando com os meus pais na Casa Verde, dividindo o quarto com o meu irmão (e a gente sempre via o Jô de noite).
Pode parecer clichê, ou meio besta, mas se alguém me falasse que minha vida de lá para cá seria assim e assado, acho que não acreditaria. Nos fracassos, nos sucessos, nas frustrações, nas pessoas que surgiram na minha vida, algumas -- que eu achava que durariam tanto -- que desapareceram completamente, outras que permanecem, a saber, meus amigos do colegial em especial. As trocentas casas que já morei, as duas cidades, os dois países. E lembrei dos detalhes daquele apartamento na rua Relíquia, em 2001, que eu ficava de madrugada de fone de ouvido com meu discman na janela da sala olhando o movimento quase inexistente da rua. E o meu primeiro computador ali, com internet pífia. Meus avós maternos ainda eram vivos e nos visitavam sempre.
Hoje, sozinho aqui na sala do apartamento onde moro no centro, trabalhando, vendo o historiador falar em jainismo, hinduísmo, deuses que adoram insetos, eu penso o quanto tudo aquilo pra mim na época não devia fazer sentido como faz hoje, que gosto tanto de religiões orientais, em especial as da Índia. E me transporto para daqui alguns anos e me vejo como uma nova pessoa, distante, como um amigo que ficou no passado, ali na Bela Vista, que se apaixonou pela Índia quando conheceu Délhi. E vou me lembrar de mim, dele, com muita saudade; deste apartamento, do relógio em forma de coruja cujo tic-tac me guia noites a fio nessas viagens pelo tempo, pelo espaço, pelas pessoas em quem penso, pelas pessoas que virei, fui, tentei ser. As intermitências do coração, que fala o Proust; as casas, as estradas, as avenidas, são fugidias, como os anos que passam.

19.8.14

A ilha

Nós dois fizemos as contas. Da parte dela, decidiu que era hora de eu partir, e da minha parte, que eu a havia perdido. Porque, afinal de contas, eu nunca ia sair daquela ilha. Minha ideia era morrer por lá, completamente sozinho. Doente, depois de alguma queda, qualquer coisa. A única escolha que eu tinha, a única coisa sobre a qual eu tinha um mínimo de controle era quando, como e onde isso poderia acontecer. Então eu amarrei uma corda no alto para me enforcar, mas a corda arrebentou. Percebi que eu não conseguia sequer me matar, que eu não tinha nenhum poder, nenhum controle de nada. E soube que, de algum modo, eu tinha que continuar vivo. Continuar respirando. Mesmo que eu não tivesse mais muitos motivos para isso. Na minha lógica, eu jurava que jamais veria esse lugar de novo. E aqui estou eu, de volta. Onde nasci, falando com vocês. E eu a perdi completamente. Estou muito triste por não tê-la mais comigo. Mas muito grato por ela ter estado, de algum modo, comigo naquela ilha. E agora sei o que devo fazer: continuar respirando. Já que amanhã o sol vai nascer de novo. E quem sabe o que a maré pode nos trazer.

(monólogo adaptado por mim do filme Náufrago, com o Tom Hanks)

24.4.14

O detetive

Não há figura mais solitária, de completo isolamento social, na literatura, ou nos filmes, que o detetive. Com suas combinações, estratégias e caderninhos repletos de detalhes da vida alheia, seus objetos de estudo e investigação, traça perfis a lápis que denotam o nariz romano de determinada mulher que sai de casa todo dia às 9 da manhã mas nunca tem horário certo para voltar. Ou a magreza daquele marido que antes de partir com o carro em direção ao trabalho passa alguns minutos de frente ao volante olhando para o vazio, de dentro de sua garagem. São estudos físicos e comportamentais da psique humana que terminam por prender o detetive a esse amontoado de notas no papel. Descolado da vida e do contato social, mergulha na ficção alheia como se fosse a própria; no entanto, está sempre sozinho, a distância, escondido atrás do poste, invisível e inexistente. Um fantasma. 

30.3.14

You must roar

You must roar


— Sim, tem que ir vestido de Chewbacca!
— Que legal! E começa quando?
Uma quarta-feira de muito vento em Nova York. O inverno já tinha passado, mas as temperaturas hesitavam em subir com rajadas de vento de até oitenta quilômetros por hora. Se você quer testar seus limites, caminhe por downtown Manhattan, pelas ruas de Tribeca, próximo ao rio Hudson, num dia de ventania, assim pensava Tom Rosenthal enquanto trocava mensagens de texto com a namorada, no extremo sul do continente americano.
Na semana seguinte serviria docinhos e salgadinhos kosher em um bufê judaico de New Jersey, cidade ao qual acabara de voltar com a ótima notícia. Um bom salário, quatro vezes por semana apenas, meio período, e com chances muito grandes de render boas histórias para o livro que estava escrevendo. Vê-se de tudo em festas de bar mitsvás: pais bêbados, outros cheirando cocaína no banheiro, avós tendo ataques cardíacos, crianças americanas mimadas querendo lambuzar-se mais e mais de marshmallow. Sempre tem uma ambulância estacionada no local.  
Como toda festa infantil a família, ou o jovem adulto de 13 anos, escolhe o tema. Star Wars era o grande hit. Depois de tantas décadas, a saga de George Lucas continua a motivar os sonhos jedis de juntar-se à Força de crianças do mundo inteiro. No caso de família judias, havia quase uma fixação por Star Wars. Tom fora informado pelo diretor do bufê naquele dia que a cada dez bar mitsvás nove eram celebrando a saga de Luke Skywalker. E os garçons se vestem de Chewbacca. Os homens. As meninas, judias russas magras e espetaculares com pouco inglês, vestem-se de Princesa Lea. No entanto, “nos últimos anos, temos investido mais em Amidala que Princesa Lea. Natalie Portman tem mais apelo aos jovens que Carrie Fisher, mesmo com a tal cena do Jabba the Hutt”, dizia Marco Basla, judeu, americano, italiano, responsável pelo RH do bufê. Ele contava isso com malícia, enquanto Tom reproduzia em sua mente Carrie Fisher sendo puxada com força pelo pescoço das mãos (mãos?) nojentas de Jabba. Calcinha dourada, barriga à mostra, pernas levemente entreabertas. Queria ser Jabba the Hutt no bufê para dominar alguma Carrie Fisher caipira e branquinha de New Jersey. Mas não revelou seu pensamento a Marco.
— You must roar, brincava Marco.
Chewbacca era um ídolo de sua infância, embora Jabba tivesse esse apelo sexual que marcara sua adolescência. Chewbacca era um Pateta com mais carisma. Um Pluto bípede. Que atirava nos soldados da Guarda de Darth Vader. E que tinha ótimas habilidades para pilotar, Han Solo, seu melhor amigo, que o diga. Quando satisfeito, urrava. Quando bravo, urrava. Feliz, triste, urrava. Sempre o mesmo grunhido. E agora Chewbacca teria de rugir também ao passar pela festa com canapés. Chewbacca era legal porque encarava tudo sempre com uma única e adorável reação: mmmmoooorrrrhhhh.
No dia seguinte, não ventava tanto em Nova York, mas chovia. Com seu guarda-chuva, Tom se encaminhava ao campus da Columbia University, onde encontraria um amigo professor de lá. Quando recebeu o telefonema de Marco You Must Roar Carrie Fisher Almost Naked Beaten by Jabba but Natalie Portman is Trendier Now Basla. Marco informava que ele havia perdido o trabalho por questões de documentos. Tom era apenas mais um estrangeiro com um passaporte aqui, não um cidadão americano. As contratações são difíceis aqui, explicava Basla que, pela voz ao telefone, soava mais e mais como um Jabba the Hutt. Tentamos, mas nosso advogado recomendou que não déssemos prosseguimento na contratação. Questões legais.
Tom sentiu-se capturado e congelado em carbonita, tal qual Han Solo, o melhor amigo do Chewbacca. E apenas disse “that’s OK, it is a long way to become a real Chewbacca”. Marco nem riu. Estava sério.
Desnorteado, Tom viu-se sozinho no meio do campus de Columbia. Aquelas célebres escadarias que davam acesso à antiga biblioteca de repente estavam vazias de gente. A estátua de Atena o encarava diante dos nomes de Homero, Heródoto, Sófocles, Aristóteles, Demóstenes, Cícero e Virgílio, da fachada da Butler Library. E Tom ali no meio sozinho, as pessoas tinham sumido. Viu os nomes dos clássicos sendo trocados por Luke, Han, Lando, Yoda, C-3PO, R2-D2, Ackbar. Sendo encarados agora por uma estátua enorme de Obi-Wan Kenobi cujos dizeres Alma Mater haviam sido trocados, não por um motivador “Use the Force, Luke”, mas por um inapropiado “I have a bad feeling about this”. E chovia.
Saiu do campus principal e continuou andando por uma Morningside Heights completamente abandonada e entregue, feito Tatooine. Entrou na casa onde morou Federico García Lorca, onde encontraria seu amigo professor. Hoje a casa pertence ao departamento de estudos hispânicos e lusófonos de Columbia. Sentou-se no sofá e avisou a namorada, no extremo sul do continente americano, que não seria mais Chewbacca. Que tinha dado errado.
Tom passou uns bons dez minutos olhando para a lareira onde Lorca provavelmente passava longas noites refletindo sobre os mais variados dramas da comédia humana. Os risíveis, os sensíveis, os que ficam para a posteridade, ou aqueles que se esvaem rapidamente com a ventania que vem de New Jersey, do outro lado do rio Hudson — ou com a ventania constante de Cloud City, que presenciamos no episódio V de Star Wars. O que Chewbacca faria agora? You must roar, Tom lembrou-se de Marco. Mas como se sequer tenho a fantasia? E era a casa de Lorca, imagine.
Foi quando seu amigo chegou, deu um tapinha em suas costas, e a vida impôs novamente suas demandas mais diárias e mais daninhas.

23.10.13

Barquinho

Soprou; o barquinho quase virou. Dizia então consigo: “o furacão bateu em cheio nos vaus de estibordo... arrancou os joanetes da proa e as forquetas... furou o único barco que temos... ele adernou tanto, que a amurada chegou a tocar na água...” Mas era coisa que cansava muito, continuar soprando assim, com tanta força. 

17.10.13

Morte por afogamento

No fim das contas, ele guardava muitas memórias. O problema é que não conseguia acessá-las mais e, por causa disso, não mais as possuía. São histórias que já não podem ser contadas, cujos traços insistem em ricochetear por todas as partes de seu cérebro que, mesmo vivo, não reconstrói mais nada. 

Não há muita coisa que a medicina pode fazer por quem sofre dessa condição, de quem vive entre os poucos segundos do agora ao que acabou de passar - se tenta mergulhar no passado, afogamento; se projeta pro futuro, cai no passado. Agarra-se então ao constante estado do presente absoluto.

2.10.13

Funes, o memorioso

Não sei se é uma espécie de afasia sintática ou combinada (que reconheço quando me expresso na fala) mas já faz mais de um ano que tenho lido quase tudo na internet, seja post de blog, matéria de portal, até textinhos pequenos no Facebook, de trás para a frente, ou de baixo para cima.

Eu vou descendo, lendo só as primeiras palavras de cada parágrafo, e quando chego lá no fim começo a ler tudo de baixo pra cima. Ou é índice de certa demência, da perda, ainda que moderada, da razão, conforme vou envelhecendo (faço 33 em março, ironicamente a "idade da razão") ou algum tique oriental, do de trás pra frente, pelo pouco que sei de hebraico e de iídiche e pela vontade de aprender japonês.

Mais irônico ainda é o fato de eu trabalhar com texto, com língua e com literatura. E a preocupação de que meu tempo nessa área está se esgotando. Quem sabe eu possa ter algum tipo de aposentadoria por invalidez e eu me volte aos números, como Funes, o memorioso, e seu sistema que enumera toda e qualquer arbitrariedade que vê pela frente. Sempre fui melhor em matemática que em qualquer língua mesmo. 

6.7.13

A morte espreita Don Draper



A revista Amarello já está nas bancas (e livrarias) e, para quem gosta dos temas Mad Men, morte e Freud, eu escrevi um texto nesta edição chamado "A morte espreita Don Draper". Um trecho:

"Se o luto faz com que o ego renuncie ao objeto, declarando-o morto e oferecendo-lhe como prêmio permanecer vivo, este parece ser o drama de Don Draper que encerra sua existência e move todos os motivos de Mad Men. Após a morte do verdadeiro Don, em batalha, só restava uma maneira de premiá-lo: sobrevivendo, essencialmente, como tal - quase como uma negação da negação da negação do luto e da morte. Como a queda do homem, representada na abertura do seriado, em uma imagem que pode ser tanto um suicídio como a celebração do rito da defenestração, em que remove-se alguém de cena para sobreviver."

Espero que todo mundo goste desta edição, que está muito bonita, e do que escrevi. Prometo que não falei muita besteira sobre a série nem sobre Don.

19.8.12

Morre Hirao, meu grande amigo

Neste domingo (19) recebi uma notícia muito triste. Roberto Hirao, o meu melhor amigo no jornalismo, morreu neste fim de semana.

Conheci o Hirao quando editei o livro que reunia 70 textos dele na Folha da Tarde, chamado "70 Lições de Jornalismo". Trabalhei junto com a Cleide Floresta, à época editora do caderno Show do Agora, e diretamente com o autor, que me ensinou muito mais do que aquelas 70 lições.



Ao longo das muitas páginas e da edição do livro, me tornei amigo do Hirao. Ele me ligava, mesmo falando com muita dificuldade e com uma voz extremamente baixa, para conversarmos sobre cinema, uma de suas paixões. Principalmente o cinema japonês. Muitas vezes a gente ia tomar um café ou comer qualquer coisa na cantina da Folha, que ficava no 10º andar do prédio ali da Barão de Limeira. Ele me contava muitas coisas e histórias do jornalismo, como o Miguel Arcanjo também relembra aqui, além de falar sobre detalhes de filmes etc.

Dei para ele dois filmes de presente: o "Zelig", do Woody Allen, e o "A Condição Humana", épico do Masaki Kobayashi com mais de 9 horas de duração, dividido em três partes. Lembro que, depois do presente, ele reviu o filme (um de seus preferidos) e escreveu uma crítica para a Ilustrada (pode ser lida aqui). Para um senhor com certa idade, com uma doença que dificultava funções básicas no jornalismo como falar e escrever, o texto era um presente para mim.

No lançamento do seu livro, cheguei atrasado no dia. Alguns colegas presentes no dia me contaram que o Hirao ficava perguntando pra eles: onde está o Thiago? E todos o confortavam dizendo que eu já estava chegando. Quando cheguei, vi o Hirao de longe com a família (que o ajudava a autografar os livros), e fiquei muito emocionado. A gente se abraçou, de um jeito meio atrapalhado, mas muito intenso. E fiquei com muita vontade de chorar no dia, choro que hoje não consegui controlar.

Jantei algumas vezes em seu apartamento em Perdizes. Conversávamos muito, ele me mostrava trechos de alguns filmes e alguns de seus cantores japoneses prediletos. Ele me mostrava detalhes do prédio, me apresentava os carros de alguns moradores ilustres, como o de Marcelo Rubens Paiva, "carro inteiramente adaptado pra ele poder dirigir", repetia Hirao.

Hoje é um dia muito triste. É o primeiro grande amigo que perco em minha vida.