30.3.14

You must roar

You must roar


— Sim, tem que ir vestido de Chewbacca!
— Que legal! E começa quando?
Uma quarta-feira de muito vento em Nova York. O inverno já tinha passado, mas as temperaturas hesitavam em subir com rajadas de vento de até oitenta quilômetros por hora. Se você quer testar seus limites, caminhe por downtown Manhattan, pelas ruas de Tribeca, próximo ao rio Hudson, num dia de ventania, assim pensava Tom Rosenthal enquanto trocava mensagens de texto com a namorada, no extremo sul do continente americano.
Na semana seguinte serviria docinhos e salgadinhos kosher em um bufê judaico de New Jersey, cidade ao qual acabara de voltar com a ótima notícia. Um bom salário, quatro vezes por semana apenas, meio período, e com chances muito grandes de render boas histórias para o livro que estava escrevendo. Vê-se de tudo em festas de bar mitsvás: pais bêbados, outros cheirando cocaína no banheiro, avós tendo ataques cardíacos, crianças americanas mimadas querendo lambuzar-se mais e mais de marshmallow. Sempre tem uma ambulância estacionada no local.  
Como toda festa infantil a família, ou o jovem adulto de 13 anos, escolhe o tema. Star Wars era o grande hit. Depois de tantas décadas, a saga de George Lucas continua a motivar os sonhos jedis de juntar-se à Força de crianças do mundo inteiro. No caso de família judias, havia quase uma fixação por Star Wars. Tom fora informado pelo diretor do bufê naquele dia que a cada dez bar mitsvás nove eram celebrando a saga de Luke Skywalker. E os garçons se vestem de Chewbacca. Os homens. As meninas, judias russas magras e espetaculares com pouco inglês, vestem-se de Princesa Lea. No entanto, “nos últimos anos, temos investido mais em Amidala que Princesa Lea. Natalie Portman tem mais apelo aos jovens que Carrie Fisher, mesmo com a tal cena do Jabba the Hutt”, dizia Marco Basla, judeu, americano, italiano, responsável pelo RH do bufê. Ele contava isso com malícia, enquanto Tom reproduzia em sua mente Carrie Fisher sendo puxada com força pelo pescoço das mãos (mãos?) nojentas de Jabba. Calcinha dourada, barriga à mostra, pernas levemente entreabertas. Queria ser Jabba the Hutt no bufê para dominar alguma Carrie Fisher caipira e branquinha de New Jersey. Mas não revelou seu pensamento a Marco.
— You must roar, brincava Marco.
Chewbacca era um ídolo de sua infância, embora Jabba tivesse esse apelo sexual que marcara sua adolescência. Chewbacca era um Pateta com mais carisma. Um Pluto bípede. Que atirava nos soldados da Guarda de Darth Vader. E que tinha ótimas habilidades para pilotar, Han Solo, seu melhor amigo, que o diga. Quando satisfeito, urrava. Quando bravo, urrava. Feliz, triste, urrava. Sempre o mesmo grunhido. E agora Chewbacca teria de rugir também ao passar pela festa com canapés. Chewbacca era legal porque encarava tudo sempre com uma única e adorável reação: mmmmoooorrrrhhhh.
No dia seguinte, não ventava tanto em Nova York, mas chovia. Com seu guarda-chuva, Tom se encaminhava ao campus da Columbia University, onde encontraria um amigo professor de lá. Quando recebeu o telefonema de Marco You Must Roar Carrie Fisher Almost Naked Beaten by Jabba but Natalie Portman is Trendier Now Basla. Marco informava que ele havia perdido o trabalho por questões de documentos. Tom era apenas mais um estrangeiro com um passaporte aqui, não um cidadão americano. As contratações são difíceis aqui, explicava Basla que, pela voz ao telefone, soava mais e mais como um Jabba the Hutt. Tentamos, mas nosso advogado recomendou que não déssemos prosseguimento na contratação. Questões legais.
Tom sentiu-se capturado e congelado em carbonita, tal qual Han Solo, o melhor amigo do Chewbacca. E apenas disse “that’s OK, it is a long way to become a real Chewbacca”. Marco nem riu. Estava sério.
Desnorteado, Tom viu-se sozinho no meio do campus de Columbia. Aquelas célebres escadarias que davam acesso à antiga biblioteca de repente estavam vazias de gente. A estátua de Atena o encarava diante dos nomes de Homero, Heródoto, Sófocles, Aristóteles, Demóstenes, Cícero e Virgílio, da fachada da Butler Library. E Tom ali no meio sozinho, as pessoas tinham sumido. Viu os nomes dos clássicos sendo trocados por Luke, Han, Lando, Yoda, C-3PO, R2-D2, Ackbar. Sendo encarados agora por uma estátua enorme de Obi-Wan Kenobi cujos dizeres Alma Mater haviam sido trocados, não por um motivador “Use the Force, Luke”, mas por um inapropiado “I have a bad feeling about this”. E chovia.
Saiu do campus principal e continuou andando por uma Morningside Heights completamente abandonada e entregue, feito Tatooine. Entrou na casa onde morou Federico García Lorca, onde encontraria seu amigo professor. Hoje a casa pertence ao departamento de estudos hispânicos e lusófonos de Columbia. Sentou-se no sofá e avisou a namorada, no extremo sul do continente americano, que não seria mais Chewbacca. Que tinha dado errado.
Tom passou uns bons dez minutos olhando para a lareira onde Lorca provavelmente passava longas noites refletindo sobre os mais variados dramas da comédia humana. Os risíveis, os sensíveis, os que ficam para a posteridade, ou aqueles que se esvaem rapidamente com a ventania que vem de New Jersey, do outro lado do rio Hudson — ou com a ventania constante de Cloud City, que presenciamos no episódio V de Star Wars. O que Chewbacca faria agora? You must roar, Tom lembrou-se de Marco. Mas como se sequer tenho a fantasia? E era a casa de Lorca, imagine.
Foi quando seu amigo chegou, deu um tapinha em suas costas, e a vida impôs novamente suas demandas mais diárias e mais daninhas.

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